- Gerar link
- X
- Outros aplicativos
No cenário efervescente dos anos 90, onde os videogames ainda lutavam para transcender a alcunha de “brinquedos para crianças”, emergiu um título que desafiaria todas as convenções e redefiniria o entretenimento interativo: Grand Theft Auto. Lançado em 1997, o jogo da DMA Design, antigo nome da empresa que virou a Rockstar North, não era apenas um experimento em liberdade virtual; era, desde sua concepção, uma máquina de polêmicas, habilmente orquestrada por uma nome polêmico da publicidade: Max Clifford.
Esta não é apenas a história de um jogo; é o relato de como a controvérsia, por vezes fabricada e muitas vezes inflamada, se tornou a força motriz por trás de um dos fenômenos culturais mais duradouros da indústria dos games, cimentando o legado de Grand Theft Auto e da Rockstar Games como sinônimos de ousadia e transgressão.
O nascimento do GTA
Em meados de 1997, a paisagem dos videogames era dominada pela ascensão dos gráficos 3D e do realismo visual, com títulos como Tomb Raider ditando as tendências. Nesse contexto, o primeiro Grand Theft Auto, com sua visão isométrica em 2D e seus carros e personagens compostos por poucos pixels, parecia quase anacrônico. No entanto, por trás dessa estética simplista, residia uma ambição sem precedentes: a de lançar os jogadores no “centro de seu próprio universo criminoso.
A visão de Sam Houser, o homem que se tornaria a figura central da Rockstar Games, era clara: criar jogos que fossem “relevantes”, que “empurrassem os limites” da narrativa e da experiência interativa.
GTA permitia roubar carros, atropelar pedestres, cometer crimes e até interagir com policiais de maneiras que desafiavam o status quo moral dos jogos da época.
Para os criadores da DMA Design, a prioridade era a jogabilidade, a imersão na liberdade de um mundo aberto onde “não havia pontuação para bater ou princesa para salvar”. Essa abordagem libertária, contudo, já carregava o germe de uma controvérsia inevitável.
O mestre da manipulação: Max Clifford e a arte de chocar
Ciente do potencial explosivo de GTA e da necessidade de destacar um título que, graficamente, não impressionava, a BMG Interactive – com suas raízes na indústria musical – tomou uma decisão audaciosa e sem precedentes no mundo dos games: contrataram Max Clifford.
Clifford não era um publicista comum; no Reino Unido, ele era um “mestre manipulador da mídia tabloide”, famoso por criar escândalos para gerar publicidade, como a icônica (e falsa) manchete “Freddie Starr Ate My Hamster”. (Freddie Starr comeu meu hamster”).
A matéria falsa, publicada no The Sun em 13 de março de 1986, alegava que o comediante Freddie Starr teria colocado o hamster de uma amiga entre duas fatias de pão e o comido, criando um escândalo imediato e enorme repercussão. Na verdade, como revelou a modelo que era amiga de Freddie na época, ele apenas colocou o hamster no sanduíche, mas nunca chegou a comê-lo.
O conselho de Clifford à BMG foi direto e provocador: “Esqueçam a convenção e abracem a criminalidade do GTA em toda a sua glória”. Ele previu que a “elite do establishment” acharia o jogo “absolutamente repulsivo”, e que essa repulsa, paradoxalmente, seria a melhor publicidade.
Sam Houser abraçou a ideia com entusiasmo, vendo-a como uma forma de posicionar os jogos como uma forma de arte madura, diferente dos filmes. Dave Jones, o criador original do jogo, inicialmente demonstrou ceticismo, preocupado em “balançar o barco” devido a planos de fusão da DMA, mas Clifford, com sua experiência, garantiu que tudo aconteceria como planejado. Ele prometeu “incentivar as pessoas certas” na política a criticar o jogo, pois isso atrairia publicidade e, o mais importante, incentivaria os jovens a comprar!

Max Clifford faleceu em 2017. Ele chegou a ser condenado por diversos crimes sexuais contra menores e adultos. Essas condenações destruíram sua reputação pública e o afastaram permanentemente do mundo dos negócios e da mídia.
O espetáculo da indignação: como a polêmica impulsionou o sucesso de GTA

A “profecia” de Clifford se materializou de forma espetacular. Seis meses antes do lançamento, em maio de 1997, debates sobre Grand Theft Auto já aconteciam na Câmara dos Lordes, expressando preocupações com a glorificação de crimes de carro e violência. Os tabloides britânicos, sedentos por sensacionalismo, estamparam manchetes como “jogo de computador criminoso que glorifica bandidos de fuga após atropelamento” enquanto porta-vozes de associações criticavam o jogo por “corromper mentes jovens”
A Rockstar Games, ainda sob o nome DMA Design, não recuou, pelo contrário. Lançaram campanhas de rádio usando trechos dos debates parlamentares, distribuíram “multas” falsas em carros com o logotipo do GTA e a frase “é um crime não ter”.
Chegaram até a distorcer um pequeno acidente de carro do programador Brian Baglow para uma matéria sensacionalista no News of the World, intitulada “Sick Car Game Boss Was Banned from Driving” (chefe de jogo de carro doentio que foi banido de dirigir).
O ápice veio com a decisão da British Board of Film Classification (BBFC), que, após uma análise e a aprovação de um psicólogo, classificou GTA para maiores de dezoito anos.
O jogo foi declarado “o mais controverso em uma década” antes mesmo de seu lançamento nos Estados Unidos. Essa visibilidade sem precedentes, gerada pelo escândalo, superou as críticas aos gráficos “desatualizados” e impulsionou as vendas, criando um “culto apaixonado” no Reino Unido. Quando a Take-Two Interactive adquiriu a BMG Interactive em 1998, as táticas provocadoras foram replicadas na América, garantindo que o fenômeno GTA se tornasse global.
A transgressão como símbolo
A estratégia de marketing provocador de Max Clifford, embora controversa, foi o catalisador que transformou Grand Theft Auto de um jogo promissor em um ícone cultural. A imagem de transgressor, cultivada desde o início, tornou-se parte intrínseca da identidade da franquia e da Rockstar Games.
Ao transformar a condenação moral em publicidade gratuita, Clifford não apenas vendeu cópias, mas também posicionou GTA como um produto de entretenimento adulto e desafiador, afastando-o da percepção de “coisa de criança”.
A audácia da Rockstar em “empurrar os limites” continuou com as iterações futuras da série, como o escândalo “Hot Coffee” em San Andreas e as intermináveis discussões sobre violência em Manhunt.
A controvérsia não era um acidente, mas uma característica quase planejada que gerava debates e, consequentemente, interesse. Essa abordagem influenciou a indústria de jogos como um todo, com muitos tentando emular o estilo da Rockstar. No entanto, poucos conseguiram replicar a complexa mistura de sátira social, liberdade de gameplay e marketing calculista que fez de GTA um fenômeno global.
Comentários
Postar um comentário